O Que Fazer Nordeste de Amaralina

Quando a terra grita: soterramento no Pé Preto expõe o abandono histórico no Nordeste de Amaralina

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Na manhã da última terça-feira (8), um operário de 33 anos foi parcialmente soterrado durante uma obra de urbanização no Pé Preto, localidade situada no bairro Nordeste de Amaralina, em Salvador. A intervenção é realizada pela prefeitura. O trabalhador atuava em serviços de alvenaria quando, por volta das 10h, um deslizamento de terra o deixou preso da cintura para baixo. O resgate, feito pelo Corpo de Bombeiros, levou cerca de 30 minutos. Ele foi socorrido com ferimentos no tornozelo e joelho, e encaminhado a uma unidade de saúde. Seu estado de saúde é estável. Nenhuma outra pessoa ficou ferida.

À primeira vista, pode parecer “apenas” um acidente de obra. Mas, como tudo no Nordeste de Amaralina, esse episódio precisa ser lido com uma lente mais profunda que reconheça a história, a espiritualidade, o racismo ambiental e o abandono político que moldam a paisagem do bairro.

Pé Preto: quando o sagrado vira entulho

O acidente ocorreu no Pé Preto, área ocupada de forma desorganizada na última década, mas que carrega raízes muito mais profundas. Ali existia um ambiente natural de dunas, árvores e solo sagrado para comunidades de matriz africana, onde religiões como o candomblé realizavam rituais ancestrais.

O local era considerado território de Iroko, orixá ligado ao tempo e à espiritualidade, protegidos por árvores consagradas como a gameleira, plantada pelo pai de santo Manoel Nascimento nos anos 1950.

Esse solo foi violentado pela urbanização sem planejamento, com moradias construídas sobre brejos e rios aterrados, em nome da especulação imobiliária e do lucro fácil. A tragédia do soterramento não é fruto do acaso, mas consequência de decisões políticas e empresariais que colocam o capital acima da vida.

A obra pública onde o básico não chegou

O que acontece no Nordeste de Amaralina reflete uma lógica complexa e contraditória. Embora as obras em andamento no Pé Preto contem com planejamento técnico e sejam conduzidas por órgãos de grande porte, o contexto em que elas se inserem é marcado por disputas históricas de terra, abandono e ocupações irregulares. A região, ocupada há mais de uma década, envolve mais de 100 famílias que reivindicam o direito à moradia, muitas delas amparadas pela prefeitura com auxílio para habitação temporária até a conclusão das obras. Ainda assim, o acidente recente revela os riscos que persistem quando se constroem sonhos em cima de um passado negligenciado. A terra cede não por falta de técnica, mas por um acúmulo de omissões, disputas e feridas abertas. O soterramento no Pé Preto é mais um reflexo de uma história onde a urgência da vida encontra a lentidão do Estado.

O esquecimento também é estratégia

Poucos sabem, por exemplo, que onde hoje há escolas e prédios de concreto, havia espaços de culto e proteção espiritual. A tentativa de remover a árvore Loko, símbolo da força de Iroko, falhou três vezes durante a gestão do prefeito Nelson de Oliveira. Na última delas, um tratorista morreu como se a própria terra clamasse por respeito.

Esse passado é silenciado. O que se ensina nas escolas do bairro ignora a história espiritual, cultural e ambiental do território. E quando a comunidade perde sua memória, perde também sua capacidade de resistir ao avanço do concreto e do descaso.

Pé Preto Nordeste de Amaralina, 2025, Por Dener Dublack/OQueFazerNA.

O que esse acidente revela?

  • A vida de trabalhadores pobres segue sendo tratada como descartável.
  • Obras públicas continuam sendo feitas em territórios precarizados com risco elevado, mesmo quando planejadas.
  • A destruição de espaços sagrados e ecológicos compromete não só a espiritualidade local, mas também a estabilidade física do bairro.
  • A população é condicionada a ver o absurdo como rotina. Mas não é normal viver com medo de deslizamentos, soterramentos ou acidentes evitáveis.

Nada é por acaso: o solo responde

O soterramento no Pé Preto é mais que um acidente de obra. É uma denúncia viva da forma como a cidade trata suas margens: como depósitos humanos, como territórios sem valor, como corpos sacrificáveis. Mas também é um grito da terra, uma terra que carrega histórias, encantados, orixás e memórias que seguem resistindo, mesmo soterradas.

Que esse episódio nos sirva de alerta: para parar, ouvir, lembrar. Porque cada buraco aberto no Nordeste de Amaralina é também uma cova escavada na dignidade de um povo. E nós, como mídia comunitária, temos o dever de trazer à tona o que tentam enterrar.